sábado, 25 de dezembro de 2010

Inversão...

A minha gratidão tinha corpo debilitado e algumas rugas na face... Tinha os cabelos encaracolados e finos...como dos anjos... Conhecemos-nos há anos, e no começo eu que era a gratidão dela; o mundo dela; o amor e o cuidado dela; o medo e o orgulho dela... Aquela gratidão foi crescendo ali, sem pedir licença nem perguntando "como" e "por que". Era para ser, razão de existir.
Quando nos conhecemos, ela já estava nos seus  30 anos. .. Revertendo expectativas daqueles que têm mente pequena e coração ferido, ela soube ser mãe... E sendo mãe me ganhou, me escolheu sem saber como seria, mas desejando que fosse... Que eu fosse alguém independente dela, que a amasse muito, que assistisse as novelas mexicanas e as do SBT com  ela todas as noites.
Ela quis coisas que não conseguiu, como que eu não me decepcionasse quando percebi que ela gostava de beber, que eu nunca chorasse por um homem que não me merecesse, que a vida nunca me desse uma rasteira, que eu fosse mais compreensiva com as falhas dela e e com as minhas também...
Entre as coisas que quisemos e não conseguimos obter uma da outra, percebemos que no meio das faltas e das falhas sobrou espaço para os acertos que o amor provoca... Mesmo sem nunca exigir nada em troca nos fizemos amáveis uma para o outra... Cada dia, mais um dia, mais uma briga ou mais uma conversa gostosa na cozinha... Um presente inesperado ou um esporro necessário... Nos completávamos assim...
Ela nunca  me chamou a atenção na frente dos outros ou deixou faltar qualquer coisa dentro de casa...
 Não aprovou muitas das minhas escolhas, mas sempre ficou ali, observando de longe...
Do meu lado, nunca deixei que falassem mal dela perto de mim, e, de uma forma ou de outra, nunca tirei do meu norte não ser a pessoa que ela não gostaria que eu fosse... Não aprovei muitas de suas atitudes, mas não deixei que tirassem de dentro de mim a escolha de amá-la incondicionalmente.
Ela perdeu a mãe muito jovem, perdeu  irmão há pouco mais de seis meses...
 Eu a ganhei de presente quando já tinham programado que eu viria ao mundo mesmo sem saber quem cuidaria de mim... Ganhei dois irmãos,uma irmã... um pai e uma família inteira no pacote. Aos 25 anos ganhei mais 5 irmãos ...Era seu segredo ...seu primeiro casamento ...seus outros 5 filhos...
E ela cuidou tão bem de tds... Nos defendeu, alimentou ...  Educou...
Nos últimos dias, fizemos um trato silencioso... Sem pedir, ou sem pensar que um dia aquilo poderia acontecer, mas por necessidades do coração e da dor, trocamos de lugar... Ali, naquele quarto de hospital e com uma televisão que não era ligada, virei a mãe e ela a  filha...
 Durante a noite acordava precisando de cuidados... Dos mesmos cuidados que recebi dela quando os papéis familiares estavam na ordem natural... Das coisas que me ensinou, repasso à minha mente e às minhas mãos o dever de vigiá-la, de trocar seu soro, vesti-la, pedir p ela  escovar seus dentes e alimentá-la... Prestar atenção no horário dos remédios...
...Segurar as mãos dela e, assim como ela fez quando precisava me ensinar a atravessar a rua ou andar de bicicleta... E eu choro por ela, como ela chorou comigo toda vez que ralei meus joelhos no asfalto ou tive febre alta causada pela amigdalite.
A minha mãe, o meu espelho, o meu bebê que me ensinou a chorar gritando baixo sozinha no quarto, a implorar aos céus que tudo desse certo, e que neste teste nós duas  pudéssemos passar com nota máxima... Sem pedido prévio, estava me ensinando a ser mãe, a abandonar o sono pesado para velar o dela...
 Me fez perceber que voltaremos ao pó, que só amor de pai e mãe transcende qualquer barreira física.
 E me ensinou a agradecer por todo aquele bem que já sabia que a vida havia me dado de graça quando abri os olhos para o mundo.
Queria que ela voltasse pra casa. Curada. Que tudo isso fosse apenas um susto. Queria tomar um copo de Ice tea com ela e assistir os seus dramas preferidos na TV q não suporto.... Não poderemos fazer isso...

Vou aqui de um jeito ou de outro, com os olhos abertos demais, enxergando muita coisa dolorida, com o rosto ardendo de tanta lágrima, com o desabafo de quem está tremendo de medo e congelando de incompetência, com as risadas raras cada vez que dou  quando vem a lembrança dos nossos momentos e me encho  de esperança... E com a gratidão se estendendo aos amigos que estão por perto, mesmo de longe, em oração... Queria poder ser filha por mais tempo e queria ter de volta a minha mãe...

Eu entendo e aceito...só queria falar sobre o meu querer...
 
 
 
 
 
 
 
 

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